Você já deve ter escutado, No Pain no gain. Esta frase é slogan de uma marca de artigos esportivos e ficou famosa. Passa a ideia de que, sem dor, não é possível ter ganhos. E na área de treinamento físico ela foi incorporada como um mantra, “ tem que doer para crescer” é uma das muitas frases que se houve em academias por exemplo. Mas será mesmo que eu preciso ter dor para alcançar a hipertrofia? Felizmente a resposta é não! Então pode parar de se torturar.
Vamos definir algumas coisas antes. Hipertrofia significa o aumento do tamanho, aqui vamos falar especificamente de hipertrofia muscular, ou seja, aumento do tamanho das fibras musculares, ok? Não confundam com hiperplasia, que é o aumento do número de células/fibras musculares. Sabe quando você faz um exercício físico e fica com dor muscular depois de um dia? É sobre isso que vamos falar. A lesão muscular induzida pelo exercício que causa dor tardia. Esqueça aquela história do coitado do lactato ser o causador da lesão e da dor. Já se sabe há algum tempo que ele não tem essa importância toda que se dá por ai. A dor muscular tardia aparece normalmente 24-72h (sendo o pico normalmente em 48h) após a lesão ter acontecido, justamente porque é um processo inflamatório que acontece no músculo. Última coisa antes de começar a falar mais sobre esse assunto de fato. A lesão muscular devido o processo inflamatório causa dor. Mas nem toda a dor precisa ter lesão para acontecer ok?
Há uma série de eventos que acontecem para induzir a lesão muscular. Um dos mais importantes é o tipo de exercício. A contração muscular é um encurtamento da fibra muscular induzido pela aproximação dos filamentos de actina e miosina (que existe dentro de cada célula muscular). Você pode ler mais sobre isso aqui. Eu posso realizar uma contração concêntrica, aproximar as extremidades do músculo, encurtando-o. E posso fazer uma contração excêntrica, o meu músculo está contraindo, mas suas extremidades estão sendo afastadas. Para ficar claro imagine que você está segurando um copo de café e vai leva-lo a boca. Ao aproximar o copo da boca, você faz uma contração concêntrica no músculo bíceps braquial (aquele do braço). Ao mover o braço para colocar o copo de volta na mesa o bíceps irá também contrair, mas desta vez de forma excêntrica (importante: outros músculos estão envolvidos nesse movimento, mas é apenas para dar um exemplo). Você pode experimentar trocar o copo de café, por um objeto mais pesado e observar o que acontece.
E por que isso é importante? Porque as lesões musculares acontecem de maneira muito mais comum quando eu estou fazendo uma contração excêntrica. A contração isométrica (contrair sem mover os braços) também pode levar à lesão, dependendo do ângulo que a articulação estiver posicionada e da força que eu produzo ao contrair. Quando o músculo estiver em uma posição de alongamento e realizar uma contração isométrica máxima eu posso ter lesão. Fatores mecânicos também irão contribuir para o aumento da lesão, como o número de contrações, força, velocidade de contração.
O que pode parecer contraditório é que as contrações excêntricas são as que produzem maior nível de força ao mesmo tempo que recrutam menos unidades motoras (leia mais aqui). Isto faz com que aumente a tensão de fibras individuais e o aumento de tensão nos sarcômeros causando lesão em miofibrilas, proteínas do citoesqueleto e também proteínas da matriz extracelular. Esse aumento de estresse mecânico também leva a dano no complexo de excitação e contração muscular (levando à alteração de algumas proteínas necessárias para que haja a contração) devido a ativação de canais de sódio dependentes do estiramento muscular que aumentam o influxo de cálcio no meio intracelular e induzem a protease de algumas proteínas como a tropomiosina. O acúmulo de proteínas danificadas desencadeia o processo inflamatório. Todos esses eventos resultam em diminuição da capacidade de produzir força, inchaço muscular, rigidez, aumento de proteínas na circulação (CK e mioglobulina), dor muscular e diminuição da amplitude de movimento.
Devido a esse processo há uma diminuição também da performance, tanto em atividades que exigem resistência quanto em atividades que exigem potência. Por isso a importância de uma boa periodização, especialmente se for atleta de competição.
Em alguns casos a lesão pode ser tão extrema que resulta em uma condição chamada de rabdomiólise, especialmente quando acompanhada de situações de desidratação, calor e hipotensão (você conhece alguma situação esportiva na qual esses fatores acontecem em conjunto?). A quantidade de CK (proteína quinase) decorrente da lesão muscular aumenta na circulação sangue significativamente, assim como a mioglobina. O problema acontece quando o pH do sangue cai abaixo de 5,4 (bem mais ácido) porque a mioglobina pode se desassociar em globina e ferritina. A ferritina é tóxica para os túbulos renais e pode levar à falência renal. Além dos efeitos sobre a os rins, a lesão muscular pode levar à síndrome compartimental e induzir compressão nervosa que irá diminuir a função muscular.
A causa exata da rabdomiólise ainda não é muito bem compreendida, fatores secundários como genética, álcool, alta humidade, suplementação nutricional com epinefrina ou androstenediona, drogas, hipocalemia podem acelerar a lesão muscular facilitando que a rabdomiólise se instale. Indivíduos saudáveis podem apresentar a rabdomiólise induzida pelo exercício. Normalmente casos de rabdomiólise acontecem quando a pessoa se exercita além do seu ponto de fadiga em situações como treinamentos militares, treinamento atlético e mesmo com um personal.
Calma, mas você pode estar se perguntando que “sempre ouvi que é necessário haver dano, lesão muscular para que o músculo fique mais forte”. A força e tamanho do músculo de fato aumentam após exercício excêntrico e há um processo de adaptação que diminui a probabilidade de lesão com um mesmo estímulo. Mas será realmente necessário haver lesão?
Após um exercício que causa lesão muscular há uma proteção e atenuação no músculo que foi lesionado a um segundo estímulo (visto por marcadores de processo inflamatório e lesão muscular). Ou seja, fazer uma lesão pode prevenir lesões futuras. Essa é a lógica que muitas pessoas ainda usam. No entanto já se sabe que contrações voluntárias máximas de baixa intensidade podem também ter efeito protetor (contração voluntária máxima é um termo usado para definir o quanto aquela pessoa consegue produzir de tensão, força. Esse número pode ser calculado e quando falo em contração voluntária máxima de baixa intensidade estou me referindo ao fato de usar, por exemplo, apenas 10% da capacidade de geração de força daquela pessoa). Há estudos mostrando que mesmo contrações voluntárias máximas entre 10-40% há efeito protetor, no entanto esse efeito parece ser dependente do tempo.
Não apenas as contrações excêntricas possuem esse papel protetor, mas também as contrações isométricas. A parte interessante disto é que contrações isométricas com o músculo estirado dificilmente produzem lesão e tem um grande papel de proteção.
Ou seja se preciso ou quero treinar alguém para levantar uma grande quantidade de carga, por exemplo, posso começar uma semana antes com pesos bem menores pensando em protege-lo da lesão muscular que irá acontecer ao levantar cargas mais intensas.
Não apenas um exercício intenso leva a adaptações musculares que previnem lesões futuras, mas também exercícios de baixa à moderada intensidade também apresentam este efeito.
E a hipertrofia? Há evidências que suportam a ideia que o exercício resistido excêntrico é o que mais aumenta a hipertrofia e força. Esse tipo de exercício é o que mais produz lesão muscular. Corrida de dowhill ou subir escadas são exercícios com grande movimentação excêntrica, então eles deveriam aumentar muito a hipertrofia, não? Só que não é isso que acontece, apesar de haver grande lesão não há maior hipertrofia que outros exercícios resistidos. Há outros estudos que suportam está ideia de que não é necessário haver lesão muscular para que haja hipertrofia, mas os mecanismos exatos pelo qual este processo acontece ainda não estão muito claros.
Então é possível ter hipertrofia e o efeito protetor do exercício sem causar lesão muscular. Não é preciso ter dor, inchaço, rigidez e muito menos correr o risco de ter uma rabdomiólise.
Vale sempre lembrar:
- Mantenha-se hidratado ao praticar exercício físico
- Evolua o exercício de forma gradual
E talvez o mais importante: Respeite seu corpo. Dê o tempo de descanso, pare de fazer uma atividade se seu corpo estiver com sinais de fadiga (perda de foco, contrações pequenas e involuntárias).
Exercício físico é para trazer saúde, não tirá-la.
Referência:
THIEBAUD, R. S. Exercise-induced muscle damage: is it detrimental or beneficial. Journal of Trainology , v. 1, p. 36–44, 2012.